Levantado do chão, José Saramago (Editorial Caminho)


  Tenho para ler, pousados no baú do meu quarto, vários livros recentemente editados. As livrarias, as revistas, os jornais destacam sempre os livros acabados de publicar. Mesmo os prémios destinam-se a livros publicados no ano, deixando de fora todos os livros já com alguma pátina. Com exceção dos livros e autores premiados  ou que integram os programas escolares, os outros dificilmente conseguirão sobreviver alguns anos, escondidos pelos mais recentes nos escaparates das livrarias. Por isso faço um esforço para ir lendo, de quando em vez, ou mesmo relendo livros com alguma idade.
    Levantado do chão, já teve muitas edições posteriores, mas esta que li, embora seja a 2ª edição, é de 1980, ano em que foi publicado. Já o tinha lido provavelmente na altura da edição, mas gostei muito de relê-lo. É um livro extraordinário que narra a vida difícil dos assalariados no Alentejo. A fome, a miséria, o desemprego, mas também a paixão, o amor e a solidariedade passam pelas páginas do livro, onde aparecem coisas tão surpreendentes como os olhos azuis que de geração em geração vão surgindo na família dos Boa Morte (Assim, durante quatro séculos estes olhos azuis vindos da Germânia apareceram e desapareceram, tal como os cometas que se perdem no caminho e regressam  quando com eles já se não conta, ou simplesmente porque ninguém cuidou de registar as passagens e descobrir sua regularidade. pg 24)
    Começamos por acompanhar Domingos Mau-Tempo, sapateiro, bêbedo e sua mulher, Sara da Conceição, de terra em terra, ainda antes da instauração da república. Sara termina por abandonar o marido e refugiar-se em casa do pai com os filhos. Com a morte do pai, João Mau-Tempo é o homem da casa, o mais velho. Começa a trabalhar ainda criança e virá a casar com Faustina. São sempre vidas de miséria, à mercê dos patrões e capatazes dos latifúndios, a trabalhar, quando havia trabalho, do nascer ao pôr do sol. A luta pelo direito ao trabalho e pelas oito horas é inevitável mas levará João Mau Tempo à prisão, primeiro em Torres Novas, depois em Aljube e Caxias, onde é barbaramente torturado pela PIDE. João Mau-Tempo morrerá alguns anos depois e por pouco não assistirá à revolução e ao primeiro 1º de maio.
    É um livro extraordinário, onde formigas testemunham a tortura a que são sujeitos os presos e  anjos acompanham a vida no latifúndio:
    Nos altos céus, os anjos estão debruçados dos parapeitos das janelas ou daquela varanda corrida, com balaústres de prata, que dá uma volta inteira mesmo por cima do horizonte, em dias claros vê-se bem, e apontam, e chamam-se uns aos outros, estouvaditos, está-lhes na idade, e um deles, mais graduado, vai a correr chamar dois ou três santos antigamente ligados a coisas de agricultura e pecuária para que venham ver o que vai pelo latifúndio, um desassossego, magotes de gente escura pelas estradas, onde as há, ou pelos quase invisíveis carris do mato, a atalhar caminho, ou em linha, pela estrema das searas, como um carreiro de formigas pretas. (pg. 145).

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